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Subsídios para melhor compreensão da homossexualidade. - PARTE II

Por Pe. Antônio Piber

Anexos

Anexo 1 - "A revolução sexual destrói a família"

Alguém escreveu que a Espanha “afrontou” o “ex-Papa” Bento ao permitir o casamento entre pessoas homossexuais e o divórcio express esquecendo-se que a Espanha, sendo um Estado soberano, não deve nenhuma obediência ao papa, se os espanhóis católicos romanos querem obedecer ao papa, que o façam, mas não impeçam a outros espanhóis de viver sua vida do modo que queiram, desde que estes não importunam ninguém. A separação entre Igreja e Estado é essencial para a sociedade, simplesmente porque o Estado deve lidar com pessoas de todas as religiões, inclusive pessoas sem religião. Outro grupo de pessoas que não deve obediência ao papa são os e as homossexuais, até porque a maioria deles e delas, até onde consigo mensurar, não são católicos romanos. Do ponto de vista do Estado (e do meu), a opinião do papa (mesmo a do simpático Papa Francisco) não é mais valiosa do que a opinião do Dalai Lama ou de qualquer outro líder religioso (, inclusive a minha): todos e todas são iguais até que os argumentos utilizados para defender seu ponto de vista sejam melhores que os apresentados por outra pessoa.

Simplesmente não entendo onde está a cabeça de quem implicou que a Espanha deveria obedecer ao Papa. Voltamos à Idade Média? Não seria completamente injusto se um líder hindu ditasse que católicos agissem de acordo com a doutrina hinduísta baseando-se nos livros sagrados ou nos costumes deles? Por exemplo, eles costumam separar as pessoas em hierarquias.

Imagine se fossemos um católico romano negro vivendo na Índia e os hindus dissessem que negros não podem se casar. Não seria preconceito? Não lutaríamos por nossos direitos? E se um líder de Estado fosse contra o casamento de negros, também não deixaríamos de reconhecer a autoridade dele e o atacaríamos como racista? Alguns religiosos equivocados ou mal intencionados, acreditam que a cor negra é uma “maldição divina”. Essa me parece ser exatamente a posição de muitos lideres religiosos frente à homossexualidade: “um homossexual pode tornar-se heterossexual se tiver fé”, como se homossexualidade fosse uma maldição, o que faria dos heterossexuais uma "raça superior". Observando as estatísticas de frustrações e neuroses heterossexuais e de abusos e violências sexuais heterossexuais, eu me pergunto: porque uma pessoa homossexual quereria ser um deles?

Então poderíamos argumentar que homossexualidade é uma escolha, ou é uma doença. Neste caso, eu diria (imagino) que não somos psicólogos e que não realizamos estudos detalhados sobre o assunto para poder tomar essas conclusões, mas essas ideias, na verdade, não passam de palpites. Bem, acontece que estudos psicológicos a respeito de homossexualidade têm outra conclusão cientifica e não um mero “palpite”: que homossexualidade é natural, não é uma doença (ou seja, não é prejudicial), não tem origem hormonal e não é uma escolha, pois a origem da homossexualidade está em uma complicada relação entre a formação inicial do feto e a genética (ou não?). A Organização Mundial da Saúde e o Conselho Federal de Medicina afirmam que a homossexualidade não é doença, pretendemos saber mais que eles?

Quando havia escravidão no Brasil, ela era não só permitida, como apoiada pelas autoridades, pela igreja católica romana que a justificava baseada Bíblia. Há escravidão em várias partes da Bíblia, noto em especial em Êxodo 21,20-21, onde diz explicitamente que nos é permitido bater em um escravo, desde que ele se cure em um dia ou dois (imaginemos espancar uma pessoa a ponto que esta não consiga andar direito por um dia!) porque esta pessoa é nossa escrava e é nossa propriedade. Existem outras partes na Bíblia que tornam a escravidão injustificada, mas o que faz uma parte da Bíblia melhor do que outra, de forma que a parte que fala contra escravidão é mais importante daquelas outras, poucas, que permitem a escravidão? A única coisa que diferencia estas interpretações é a nossa própria moral, é o que achamos que é certo, isto faz parte do nosso ponto de vista, mas sobretudo de nossa adesão ou não à proposta de Reino de Deus anunciada e proclamada por Jesus Cristo. Da mesma forma, usamos o nosso ponto de vista para usar as partes da Bíblia que condenam a homossexualidade, mas nós simplesmente não podemos garantir que esse é o ponto de vista de Deus, explicitado por Jesus Cristo que nunca se manifestou contra a homossexualidade e que, segundo estudiosos teria tido contato com, pelo menos duas pessoas homossexuais, conforme ????? .

Acredito que nós todos concordemos que escravidão seja ruim (mas não deveríamos aceitá-la baseado na Bíblia que dizemos seguir? E também comer carne de porco? E camarão?). Se nós voltássemos àquela época, estaríamos indo contra a sociedade, as tradições e até contra a igreja católica romana e aos protestantes ao acreditar que escravidão é ruim. Eles até diriam que nós estaríamos indo contra a vontade divina, contra a autoridade da Bíblia, do Estado e do Papa. Se nós convencêssemos um grupo de pessoas daquela época que escravidão era desumana, haveria protestos contra o nosso grupo e, devido à violência da época (novamente, violência que não só era justificada como praticada pela igreja católica romana e por protestantes), nós acabaríamos sendo torturados e mortos, provavelmente queimados pela “santa” Inquisição.

Isso é exatamente o que as e os homossexuais enfrentam hoje: o preconceito criado pelas “tradições e crenças” da sociedade que são apoiados por uma falsa religião e pela equivocada e mal intencionada interpretação da Bíblia e por seus lideres religiosos oportunistas (pastores mais homofóbicos são os que mais manipulam o povo enriquecendo-se ilicitamente com a religião) e mal intencionados (padres e bispos pervertidos e pedófilos têm, geralmente, um discurso “tradicionalista” e moralista).

Mas preconceito é preconceito, não importa se é justificado pela religião ou por um livro sagrado. Se é assim com respeito ao racismo, por que seria diferente quando se trata de orientação sexual?

Aliás, quem escreveu que a Espanha afrontou é hipócrita no seu texto. Numa hora critica os homossexuais por estes criticarem as autoridades quando estas se mostram homofóbicas, dizendo que eles não reconhecem as autoridades. Depois, critica as autoridades por permitirem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Decida-se: as autoridades são absolutas e estão acima de qualquer crítica ou não?

Outro ponto que mencionado no escrito é o ódio, mas eu vejo muito mais ódio em pessoas homofóbicas do que em homossexuais, inclusive eu vejo muito ódio disfarçado no “Deus ama o pecador, mas odeia o pecado”, este chavão fajuto usado para justificar o modo de não amar nem respeitar as pessoas. Se os homossexuais às vezes se comportam de forma inadequada é apenas uma defesa ou tentativa (equivocada, talvez) de sobrevivência em um mundo que lhes é hostil. Não que isso justifique, mas eu não os julgo por isso, mas e nós, hipócritas, porque nos comportamos com hipocrisia?

Se é permitido demitir ou não contratar um homossexual meramente pelo fato dele ser um homossexual, então também deveria ser permitido demitir ou não contratar um católico por ele ser católico, ou um evangélico por ele ser evangélico. Afinal de contas, o que faz do catolicismo ou do evangelicalismo uma raça superior, acima de preconceitos, que não se aplica aos homossexuais? Nós criticamos os homossexuais por exigirem os mesmos direitos que todos os outros têm, e nós não conseguimos assimilar o absurdo desta propaganda. Não é direito de todos ter o mesmo direito que todos os outros? Não é parte essencial da sociedade a igualdade absoluta? Entretanto, nós os criticamos por quererem tal igualdade! E, novamente a hipocrisia, nós nos reservamos o direito de discriminar um homossexual, enquanto que este não poderia discriminar-nos.

Então eu me pergunto: quem é que está de fato tentando se colocar num status claramente superior? Quem é que está se casando e impedindo que o outro se case? Quem é que está trabalhando e impedindo que o outro trabalhe? Quem é que se reserva o direito de acreditar no que quiser, mas sem dar ao outro o mesmo direito? E a regra de ouro, onde está, por que ela está de lado, no canto? Ou será ela é invocada apenas quando nos convém?

Quanto ao PLC 122 (erroneamente denominado de projeto de “lei anti-homofobia”), cometemos claros erros por desconhecimento ou por grassa má intenção. Na verdade, este projeto visa acrescentar à lei como sendo crime a discriminação por orientação sexual, além de discriminação por idade e deficiência. Note que quando se fala em discriminação por orientação sexual, trata-se de qualquer orientação sexual, seja heterossexual, homossexual, bissexual ou assexual. Se eles (ou nós) não podemos ser demitido por ser homossexual, ele (ou você) também não pode ser demitido por ser heterossexual, é isso que a lei diz. Este projeto de lei, se aprovado, também não vai impedir que as religiões considerem homossexualidade como "pecado" nem que essa ideia seja difundida, por pior que isto seja (lembremo-nos que preconceito é preconceito, não importa a desculpa utilizada). Entretanto, a lei impedirá atos discriminatórios, mas não impedirá que as doutrinas religiosas sejam ensinadas exatamente como são agora (explicitando: a lei não impede sermões que digam que atos sexuais homossexuais são pecaminosos e pessoas que os praticam são pecadoras, mas sim impede que qualquer pessoa discrimine e maltrate pessoas homossexuais. A lei não interfere no interior nem na doutrina das igrejas e das religiões). Você mente quando afirma que esta lei, se aprovada, impediria que pastores e padres preguem suas doutrinas religiosas conforme as interpretações que tenham da Bíblia. A lei reconhece os direitos das pessoas homossexuais de serem protegidas contra maus tratos e discriminações, mas não impede padres e pastores de pregar o que bem entendem.

Finalmente, o ponto principal do texto é o que o próprio título diz, “a revolução sexual destrói a família”. Qual a fonte para dizer que um casal de homossexuais não pode educar seus filhos tão bem quanto os heterossexuais? Quero dizer, algo real, algum estudo científico, estatístico ou psicológico das crianças criadas por homossexuais para dizer que elas não serão bem sucedidas? E, por favor, tire essas estatísticas de uma fonte neutra e séria, não de sites pseudos cristãos que costumam ser muito mentirosos neste (e noutros) assunto e quando você os cita apenas demonstras sua conivência com as mentiras que eles pregam.

O problema é que, se houver preconceito, é claro que o desenvolvimento das crianças criadas por homossexuais não será o mesmo, e, neste caso, claramente a homossexualidade não é a causa do problema, mas o preconceito. O mesmo poderia dizer-se de negros há décadas atrás e, na verdade, até hoje os negros têm, em média, uma educação inferior à dos caucasianos, mas isso não justifica o preconceito.

Ainda que a homossexualidade seja um “pecado” aos olhos de Deus, ainda que não faça parte do plano divino para o mundo (mas se não faz parte, por que Ele fez as pessoas assim?) e ainda que fosse melhor que os homossexuais simplesmente “vivessem na castidade”, não temos o direito de julgar ou de ditar como as pessoas devem se comportar. Temos o direito ao nosso ponto de vista, e também o direito de expressá-lo, mas devemos aceitar as pessoas exatamente como elas são, com as escolhas que elas fazem, independentemente de concordarmos ou não. Temos o direito de expressar nossa opinião, assim como as outras pessoas têm o de expressar o delas. Temos o direito de tentar ser feliz, assim como as outras pessoas têm o direito de tentar ser feliz do modo delas. E nós temos o dever de respeitá-las, assim como elas têm o dever de respeitar a nós.

Engraçado é que, por mais que o comportamento de certos líderes cristãos, com respeito a este assunto e outros assuntos mais controversos da sociedade atual seja completamente contrário aos ensinamentos fundamentais de Jesus Cristo: não julgar, amar o inimigo, sentar-se à mesa com os pecadores, não atirar a primeira pedra; eles ainda justificam seus atos na sua fé, dando mais valor ao sacrifício que à misericórdia, novamente contradizendo o próprio Cristo, e mais valor aos preceitos e tradições que ao próprio ser humano. O que é mais importante, o ser humano ou aquilo em que ele crê? O que seria da crença sem o ser humano para tê-la? O que seria dos ideais de humanidade e de moral, se não houver alguém para lutar por eles?

Os que se dizem seguidores de Jesus Cristo parecem ser, ironicamente, os últimos que seriam capazes de tirar o burro do poço num sábado, ou seja, não têm a capacidade de deixar o criticismo e o seu fanatismo de lado para poder estender a mão ao inimigo, conhecê-lo e tornar-se seu amigo, sem a reserva de que antes ele se torne como nós, que ele passe a crer no que cremos e a se comportar como queremos que ele se comporte. Afinal de contas, não é fácil deixar o nosso próprio orgulho de ser um "santo" para poder se misturar aos "pecadores". Não parece adequado um cristão “heterossexual” relacionar-se de forma pacífica com um grupo de homossexuais, de espíritas ou de ateus, ouvindo-os para entendê-los e para aprender com eles, sem julgar, sem o orgulho de acreditar que é superior e que pode “convertê-los”.

Mas, queiramos ou não, essa aceitação gratuita é o ensinamento mais básico que Jesus Cristo deu aos Seus discípulos. Se este ensinamento é negligenciado, colocado como menos importante diante de toda a "teoria cristã", então nosso cristianismo não merece o nome que tem, pois não tem nem sequer a base, de Cristo não tem nada. Nosso cristianismo é uma espécie de fã clube em torno da figura de Jesus, assim como uma multidão fanática num show de música aninha-se ao redor do cantor sem importar-se em conhecê-lo de fato. Pelo contrário, conhecem apenas a figura idealizada por eles mesmos, moldam-no de acordo com o que eles consideram ser o perfeito e idolatram este modelo, não o ser real. Infelizmente, ao adorar o modelo, idolatram a si mesmos e às “qualidades” que eles mesmos possuem, ou pior, que eles querem parecer que têm, como o padre pervertido sexualmente que insiste em publicar mensagens homofóbicas na internet, ou o pastor recentemente preso na Baixada Fluminense..., fazendo-se de si mesmos pequenos deuses, pequenos ídolos de ouro falso ou de cristal barato. E de novo aparece a tal hipocrisia, pela terceira vez.

Padre Antonio Piber

Anexo 2 - PL 122(*): O crime da homofobia, um tema nem tão controverso

Perguntam-me o motivo de promover este assunto e alguns, imbuídos de má vontade dizem que até que isto depõe contra a Igreja (na verdade não são “alguns”, mas sim os hipócritas homofóbicos, os que mantém relações homossexuais...). Mas qual é o objetivo que quero alcançar? Muito simples. O tema da sexualidade e em especial o da orientação homossexual, é um tema bíblico, teológico e pastoral, por isso não podemos nos furtar ou esquivar dele. Aquilo que pretendo discutir, não é a sexualidade em si, pois à ela dedico quase nada de meu tempo, mas sim que coloco o tema frente a diferentes escolas de interpretação das Escrituras e de nossa identidade como cristãos e cristãs e dentro desta Tradição, como católicos brasileiros. Esse debate não é secundário, mas importante e necessário em nossa vida como Igreja Apostólica Católica Brasileira e fundamental para como testemunhamos a fé em Jesus Cristo. Este debate é aquele pelo qual nossa identidade de cristãos e de cristãs se mantém ou é negada e corremos o risco de trairmos o ideal de Reino proposto e anunciado por Jesus Cristo mesmo.

Para sermos salvos temos que ter fé em Deus e amor no coração e não ter essa ou aquela orientação sexual. A fé e o amor nos libertam de toda servidão de uma serie de tiranias, entre elas, a lei (cf. 2Cor 3,3-8; 3,17). Este eixo central de nossa hermenêutica bíblica: fé e amor, não é negociável e nos liberta de toda tentação moralizante que tendemos a colocar na obra de Jesus de Nazaré a quem confessamos como o Cristo do Deus do Reino, nosso único e suficiente Salvador.

A reação de lideres cristãos ao PL 122 que pretende crimilizar a homofobia e puni-la, é sumamente clara e um exemplo deste debate. Seus sermões, seus abaixo assinados, suas pressões no Congresso, suas chantagens e suas mentiras, nos revelam sua forma de fazer hermenêutica bíblica e confessional e a medida de seu (pouco) compromisso com a causa do Reino de paz, alegria e de justiça (cf. Rm 14,17), pretendido e anunciado por Jesus Cristo.

Em primeiro lugar, todo debate sobre sexualidade, orientação sexual e matrimonio é um debate colocado no Reino Secular e não no Reino de Deus. A diferença destas duas áreas da soberania de Deus é essencial que a mantenhamos. No Reino Secular empregamos como ferramenta de análise a razão, enquanto que no Reino de Deus utilizamos a Revelação, percebemos isto com muita clareza em Dom Carlos Duarte Costa. Portanto nossas interferências como lideres religiosos no Reino Secular afetam o espaço de serviço e promoção de diretos de nosso próximo, seja ele crente ou não, e um dia teremos de prestar contas delas ao Senhor da Vida. Nesse espaço temos que conseguir que todos os seres humanos, bons ou maus, sejam considerados espaços sagrados e pessoas que têm igualdade de diretos porque todos são filhos e filhas de Deus “que não faz acepção de pessoas” (At 10,34).

Convém recordar junto aos religiosos homofóbicos que a Palavra de Deus não é um livro, mas sim uma Pessoa: Jesus Cristo e que o Livro, a Bíblia, nos revela o amor do Deus Libertador (cf. Ex 2,24;3,7; Ef 2,13; Ex 20,2; Lc 4,16-18; “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-los subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel…” (Ex. 3,7-8)). Temos que recordar o Credo que confessamos: Qui propter nos hómine set propter nostram salútem Descéndit de cælis. Et incarnátus est de Spíritu Sancto Ex María Vírgine, et homo factus est.

Esta é nossa cristologia. Não há mérito, condições e orientação sexual que nos impeça de nos aproximar do Evangelho de Jesus Cristo, esta obra libertadora de todas as tiranias, de todos os estigmas, de todas as exclusões e de todas as discriminações que são fonte de morte e injustiça. Jesus Cristo não é Moisés e não devemos confundir a Lei com o Evangelho (cf. Mt 22,37-40; Lc 16,16-18; Rm 3,19- 20; “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei” (Rm 13,8)). A Igreja deve anunciar sempre e em toda circunstancia a graça surpreendente e escandalosa de Deus. Essa é nossa tarefa, vocação, missão e visão.

A Bíblia tem diversidade de livros de distinta qualidade e não podemos colocar ao lado do Levítico a Carta aos Efésios, por exemplo. Devemos entender que a santidade da Palavra de Deus, que sempre é o Cristo de Deus, não se confunde com a santidade de um livro com diversas qualidades de livros, tanto entre eles como dentro deles. Nem todos os textos da Bíblia têm a mesma santidade e nem tudo revela na plenitude o Evangelho, as boas novas da iniciativa de Deus de reconciliar e reconciliar-se com a criação, precisamos ver o cânon dentro do Canon (cf. “E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12,33); “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?” (1Jo 4,20); “Amados, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar uns aos outros” (1Jo 4,11); ).

Quando falamos de sexualidade e casamento, estamos falando de acordos sociais que tentam proteger direitos, alguns deles muito duvidosos. O conceito, as formas e os ritos do matrimonio são uma construção cultural e religiosa. As Escrituras são o testemunho das diversas formas em que se interpretou dentro das Escrituras mesmas este conceito e a história da liturgia e da teologia do matrimonio na comunidade cristã mostram essa constante construção, evolução (ou retrocesso?) e diversidade de pontos de vista sobre este tema realmente social. Quando falamos em sexualidade, homossexualidade, heterossexualidade, homofobia, castidade, casamento, etc., não estamos discutindo sobre as Escrituras, mas sim sobre acordos e leis humanas, sobre ritos humanos que não necessitamos celebrar em uniformidade. Diferente é quando falamos em amor, porque o amor procede de Deus e conhece a Deus, pois Deus é amor (cf. 1Jo 4,7-8).

Ataques aos direitos sociais das pessoas homossexuais nos desafiam a pensar novamente sobre como vivemos o compromisso que nossa fé impõe a nossa fidelidade ao Evangelho. O exercício da sexualidade não é central para nossa salvação, mas sim a fé e o amor. Ou alguém pensa que se salvará pelo exercício desta, daquela ou de nenhuma sexualidade? Condição sexual não é condição para crer e amar. Aceitamos realmente que só Cristo salva e evitamos qualquer outro caminho tentador pelo qual queiramos chegar a santidade e a libertação de todas as tiranias? Aceitamos só a Escritura para evitar que alguma cerimônia humana ou uma tradição cultural se infiltre em nosso conceito de inclusividade? Continuamos crendo que só a graça para que nenhum ato, obra, mérito, condição humana se infiltra em nosso conceito de discipulado e ainda sustentamos que a fé e o amor são as condições da salvação para que nunca voltemos a cair no sistema que busca a salvação através do cumprimento da Lei? Se sim, então porque tanta preocupação com a preferência sexual das pessoas?

Alguns lideres religiosos podem, com todo direito, dizer não às conquistas das pessoas homossexuais e podem tentar justificar isso com sua (fraca) teologia, mas é realmente uma heresia pretender impor esse não à totalidade da Igreja de Cristo. Os que consideram os atos homossexuais um pecado, mesmo os exercidos com amor e respeito em relacionamentos estáveis, têm que explicar-me como e com que hermenêutica leem as Escrituras.

Oro e trabalho para que o Espírito que não se confunde com a Letra nos ajude a realizar um discernimento de nossa forma de ser cristãos e cristãs que queremos ser obedientes à tarefa de anunciar bênção e não condenação e preconceito. Também trabalho e oro para pedir a graça de Deus que abunde de forma que recupere na Igreja de Cristo seu lugar central do qual nunca deveríamos tê-lo tirado. Só o Espírito que nos ajuda a não confundir a letra com a Palavra e a Graça radicalmente inclusiva de Deus nos pode ajudar a resolver estes temas.

Deus nos abençoe com paz e alegria.

(*) Projeto de Lei 122 em tramitação no Congresso Federal que pretende tornar crime a homofobia quando ela se manifesta como discriminação e violência contra pessoas homossexuais.

Padre Antonio Piber

Anexo 3 - Brasil, Estado Laico: uma conquista (contribuições para o debate)

Antecedentes

O Estado na Antiguidade cristã e na Idade Média era um Estado religioso, confessional; o primeiro, pagão; o segundo, cristão. As normas jurídicas eram normas religiosas. O cristianismo domina a Idade Media, não apenas como religião, mas também como política e, neste sentido, não fez mais do que substituir o culto pagão pelo culto cristão, paganizando este e cristianizando àquele... Se na antiguidade os direitos civis eram reservados aos pagãos, e os cristãos deles eram excluídos, depois isto se inverte e o cristianismo combate e persegue, não só o paganismo, como também o judaísmo e o islã e estes e eles não tem sequer seus direitos civis garantidos e a igreja estabelecida persegue e combate os dissidentes.

Os papas nomeavam e demitiam imperadores, erguiam e derrubavam impérios.

Dominando apenas uma religião, no Ocidente, a católica apostólica romana, não se cogitava em “liberdade religiosa”. Durante a Reforma, no século XVI, os povos se defrontam com a intolerância religiosa, tanto na Reforma, quanto na Contra-Reforma e uma e a outra, com suas intolerâncias, derramam rios de sangue. Toda a Idade Moderna (do século XV ao século XVIII) padeceu do mal da intolerância religiosa, levando pessoas a serem queimadas vivas na “Santa Inquisição”, ou massacradas, como na Noite de São Bartolomeu, na Guerra dos Trinta Anos e em outros massacres.

Foi a Revolução Americana, recebendo contribuição do racionalismo anglo-francês que proclamou, pela primeira vez, em texto de lei, na Declaração de Virginia, de 12 de junho de 1776, a “liberdade religiosa”. A Primeira Emenda da Constituição Federal Norte-Americana declara que o Estado não terá uma religião e que não proíbe o livre exercício delas. Logo depois, em 1789, na Declaração dos Direitos, a França deixava livre os cidadãos para terem, ou não, uma religião e com o direito de tendo-a, se manifestarem “dentro da lei”.

Atualmente, a maioria dos Estados reconhece o direito do cidadão e da cidadã de professar livremente a própria religião e as Constituições asseguram a liberdade religiosa, como consequência de Estados democráticos de direito, conquistas dos cidadãos e das cidadãs.

A Igreja no Brasil

A separação entre Igreja e Estado no Brasil sempre foi um assunto melindroso. Nascemos sob as bênçãos da igreja católica romana da Contra-Reforma, a fundação do Brasil se dá com a celebração de uma Missa. O inicio e a efetivação da colonização/conquista se dá com o extraordinário auxilio da igreja romana. É com o apoio dos Padres que temos as maiores vitórias como Nação, nas luzes da civilização da qual nos ufanamos, na organização de um povo e na formação de nossa nacionalidade. E na Constituição do Império, de 1824, consta, no seu Artigo 5º “a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império”. A igreja romana ser a religião do Estado cerceava a manifestação de outras igrejas e de outras religiões, mas ao mesmo tempo em que a protegia e financiava, restringia sua liberdade. “A legislação imperial com seus alvarás, resoluções, avisos e regulamentos trazia presa em suas malhas e manietada a igreja a que estava unido”, afirma o Padre Manoel Barbosa (A Igreja no Brasil, Rio de Janeiro, 1945, p. 276). Nas Instruções que o Imperador Dom Pedro I deu ao Monsenhor Corrêa Vidigal, Ministro Extraordinário do Império, enviado a Roma “para obter uma concordata, em virtude da qual continuassem no Chefe do Império os antigos direitos de que, em relação à igreja (católica romana), se achavam de posse Suas Majestades Fidelíssimas” (os Soberanos de Portugal); estas Instruções se referem ao Imperador como “Soberano e Padroeiro da Igreja no Brasil” e que tem o direito e o dever de “nomear funcionários para todos os benefícios, Arcebispos, Bispos, Cônegos; apresentar e nomear pessoas para as Sés vagas”, inclusive os Párocos; e que “os Núncios Apostólicos não sejam revestidos de caráter de núncios”, ou seja, que não sejam representantes do Papa (cf. Julio Maria, Memória sobre a religião no Brasil, Rio de Janeiro, 1945, p. 64) e, consequentemente, não representem nem exerçam aqui, a autoridade pontifícia.

A “constituição outorgada de Dom Pedro I”, na verdade é da pena de Carneiro de Campos, Marquês de Caravelas, que elabora um modelo de bom senso, inspirado nas fontes do parlamentarismo europeu, é sem duvida uma obra notável para a sua época. Em seu Preâmbulo invoca a Santíssima Trindade e usa a expressão “por graça de Deus”. Tal expressão pode levar-nos a pensar que o Criador da ordem religiosa espiritual é o mesmo da ordem temporal e declara que o culto católico romano, se não internamente, ao menos externa e civil é obrigatório a todos os brasileiros e às brasileiras, sendo esta igreja a oficial e nacional e protegida. O Imperador, antes de aclamado, jura mantê-la e protegê-la; o Regente; a Regência, o Conselho de Estado e os Príncipes Herdeiros ao completar 14 anos (, Dom Pedro II e Sua Alteza Imperial, a Princesa Isabel, também o fizeram). É condição professar a religião católica romana para ser eleito deputado. Os religiosos e monges estavam excluídos de votar, pois o voto de obediência, segundo o Imperador, não lhes dava a devida liberdade... Na Lei de 15 de outubro de 1827, era passível da pena de morte quem atentasse contra a religião católica romana no Brasil.

(in)Tolerância religiosa quando o Brasil não era um Estado laico

O Brasil não era um Estado laico, como observamos acima, as pessoas usufruíam de uma limitada liberdade de consciência, mas e quanto a liberdade de culto? Para isso intervinha o poder social coercitivo, a policia, geralmente alegando “atentado aos bons costumes” ou “perturbação da moral pública”, baseado no Artigo 179, parágrafo 5º da Constituição Imperial: “Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública”. A interpretação do que seria este “desrespeito” e esta “ofensa a moral pública”, dependia muito da opinião do Bispo, do Padre e do Delegado de policia local: os exemplos em que luteranos, em Santa Maria da Boca do Monte, no Rio Grande do Sul foram presos, porque se reuniram para rezar no domingo de manhã em uma residência; ou de que igrejas calvinistas que foram demolidas, no estado do Rio de Janeiro, porque fixaram uma Bíblia aberta, de argamassa, na fachada da construção, não são isolados... No Artigo 5ºb da mesma Constituição, consta: “Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isto destinadas, sem forma alguma exterior de templo”, ou seja, não era permitido construir-se templo que não fossem os católicos romanos. Devido a pressão de Sua Majestade Britânica e dos interesses econômicos com os ingleses, se fazia vista grossa para os anglicanos, no Rio de Janeiro, Salvador e em Recife, mas mesmo assim eles não puderam colocar torre e sino como pretendiam.

O casamento canônico católico romano foi o regime matrimonial único e exclusivo durante o Império. Pessoas que não se casavam “com o padre”, não tinham seu casamento reconhecido pelas leis civis e seus filhos eram considerados bastardos e não tinham direito à herança, a empregos públicos, etc. A prova de que as pessoas eram de fato casadas, era a certidão emitida pelo pároco católico romano. Brasileiras e brasileiros, sobretudo imigrantes e seus descendentes (já que, para os católicos romanos, a conversão à outra religião ou igreja era considerado crime de lesa-religião do Estado), suas famílias, seus filhos, membros da comunidade brasileira, eram considerados cidadãos (ou súditos, no caso,) de segunda categoria. Apenas em 1861, com a Lei de 11 de Setembro, foi permitido o casamento aos não católicos romanos, mesmo assim de forma parcial. O casamento civil, como lei geral e ampla, só será introduzido com a República e o consequente advento do Estado laico, separando Igreja e Estado. A falta de casamento civil foi uma das restrições à liberdade religiosa, trazendo sofrimentos, confusões e abusos.

O atrelamento do Estado com a igreja romana e vice-versa trazia casos interessantes, por exemplo: pelo Artigo 117 da Constituição Imperial “só a descendência legítima sucede ao Trono”, ora, era público e notório que Dom Pedro I era maçom e Grão-Mestre, mas Sua Majestade celebrara seu casamento, do qual nascera Dom Pedro II, segundo o ritual católico romano, mas o casamento católico romano face as leis da igreja romana era vetada aos maçons, portando irremediavelmente nulo seria o casamento do Imperador. Sendo nulo, desapareceria a “descendência legitima” e se ela não existe, o governo de Dom Pedro II fora inconstitucional e, portanto, ilegítimo, como também fora o de Dona Maria I, Rainha de Portugal, filha de Dom Pedro I e irmã de Dom Pedro II, cognominada de Sua Majestade Brasileira... e também os atos da Regente, a Princesa Imperial, Sua Alteza, Dona Isabel, que assinou a Leu Áurea...

Era atribuição do Imperador, como chefe do Poder Executivo, e a ele competia, pois, proteger a religião do Estado, sua crença, sua moral, seu culto, zelar pela sua pureza e não consentir que fosse ofendida.

A Assembleia Geral devia aprovar (ou não) todas as Bulas pontifícias e elas ainda estavam sujeitas ao “beneplácito régio”, foi assim que a Bula Praeclara Portugalliae, de Leão XII, criando no Império do Brasil a Ordem de Cristo e até mesmo o Decreto (ou Constituição) que promulga o dogma da Infalibilidade Papal, nunca foram aprovados no Brasil, portanto, pela Lei Imperial, não têm valor. O “beneplácito” era uma figura jurídica que supunha o assentimento estatal para que uma determinação da igreja romana pudesse vigorar, ao menos no foro externo, no Brasil. Qualquer determinação da autoridade eclesiástica dependia da aprovação do Governo para vigorar.

Os “recursos” vinham a ser um direito que assistia a qualquer pessoa, inclusive clérigos, que recorressem aos tribunais civis para que corrigissem as sentenças dos tribunais eclesiásticos. Estas instituições foram extintas apenas na Republica, em 1890, pelo Decreto 119A, de sete de janeiro.

Em agosto de 1888, um ano ates da proclamação da Republica, em sua representação dirigida à Assembleia Geral Legislativa, Dom Macedo Costa, Bispo do Pará, afirmava: “se o Chefe Espiritual da Igreja, o Sumo Pontífice, envia ordens e conselhos para a direção das consciências dá-se rebate no Parlamento como se tratasse de invasão de um inimigo nas fronteiras do Império” (cf. Barbosa, ob. cit.).

Para termos uma ideia do que a falta de consciência do que garante o Estado laico aos cidadãos, pensemos em que apenas em 1890 e em 1891, quando entrou em discussão o dispositivo do projeto de Constituição do Governo Provisório (da República) foi que os cemitérios foram secularizados e houve a prática da liberdade religiosa para os ritos funerários, até antão, para se enterrar seus mortos, as pessoas deviam aceitar que fossem inumadas segundo os ritos católicos romanos, ou então que fossem enterradas “atrás dos muros, fora do campo santo”. É comum encontrar-se no interior do Rio Grande do Sul tumbas solitárias ou em pequenos grupos que são destas pessoas não católicas romanas que eram proibidas de serem enterradas nos cemitérios comuns, pois como não eram católicas romanas, não recebiam os ritos funerário desta igreja...

O juramento de manter e defender a religião da igreja católica apostólica romana não era uma preferência pessoal de Sua Majestade, o Imperador ou da Família Imperial, mas investia e implicava toda a política do Governo de tal modo que os “Conselheiros de Estado, antes de tomar posse, prestarão juramento nas mãos do Imperador de manter a religião católica apostólica romana” (cf. Artigo 141, da Constituição). A Lei de 15 de Outubro de 1827, promulgada três anos depois da Constituição declarava, no Parágrafo 2º do Artigo 1, que “maquinar a destruição da religião católica romana é uma traição contra o Estado”. O Parágrafo 3º do mesmo artigo marcava as penas que podiam ser aplicadas para este delito, incluindo a de morte.

Hoje não tem mais sentido a afirmação de que as pessoas têm “liberdade para a verdade, mas não para o erro”. Hoje compreendemos que se tem liberdade ou não se tem. E cabe ao Estado, sendo laico, proteger os cidadãos e as cidadãs na sua liberdade religiosa e não “proteger” ou favorecer esta ou aquela religião ou igreja.

Concluindo: Direitos Humanos e Diversidade Religiosa

Na democracia não há crime de heresia. O Estado laico assegura que cada cidadão e cada cidadã possa viver segundo suas crenças, sem receio de ser perseguido ou perseguida por sua adesão religiosa. Na atual Constituição Federal, a “Constituição Cidadã”, este direito está previsto no artigo 5º, inciso VI, o qual assegura liberdade de consciência e de crença. O ambiente democrático fomenta a diversidade, na medida em que as pessoas ficam livres para viver segundo suas crenças, acreditando ou não na existência de Deus.

No Brasil, como vimos, já experimentamos outro modo de tratamento para o fenômeno religioso. Nas “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, de 1707, por exemplo, não se cogitava de liberdade para o indivíduo escolher sua religião. O Livro Primeiro, título II, dispunha “como são obrigados os pais, mestres, amos e senhores, a ensinar, ou fazer ensinar a doutrina cristã, aos filhos, discípulos, criados e escravos”; a “doutrina cristã” era, apenas, a doutrina da igreja católica romana...; enquanto seu Livro Quinto, título I, propunha a obrigação de “Que se denunciem ao Santo Ofício (Inquisição) os hereges e os suspeitos de heresia ou judaísmo”.

Assim, com o Estado impondo uma religião e perseguindo as demais, forjou-se a maioria católica romana no Brasil, naturalizando-se o tratamento desigual àqueles que não professam a religião da maioria.

A memória de um Estado brasileiro confessional e intolerante deve ser preservada, para assegurar que as novas gerações saibam que os valores democráticos, que asseguram o respeito à crença do outro e até mesmo o direito de não ter crença nenhuma, são conquistas do Estado laico. A laicidade, definida como o regime de convivência no qual o Estado se legitima pela soberania popular e não mais por algum poder divino, não é contra as religiões, ao contrário, o Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega a existência de Deus, tampouco estabelece hierarquia entre as milhares de crenças professadas no país, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão e cidadã. A laicidade fomenta a diversidade religiosa, inerente a uma sociedade livre e plural.

Importante destacar que o Estado laico assegura aos religiosos e religiosas e crentes a liberdade para vivenciarem sua fé, inclusive manifestando-a publicamente, desde que não importunem a outrem; e, inclusive discordando da hierarquia, assim, por exemplo, as mulheres católicas que escolham usar a pílula, ou os jovens católicos que escolham usar o preservativo, podem fazê-lo graças à laicidade, que lhes garante o direito de decidir livremente seguir ou não os dogmas de sua própria Igreja.

Contudo, a transição de um monopólio religioso para um regime de liberdades, impõe desafios à democracia. A mudança legislativa deve se fazer acompanhar por uma transformação cultural, que desnaturalize a desigualdade religiosa. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a Organização das Nações Unidas pauta o tema da liberdade religiosa. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, enfatizando: “Tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro”.

Nas democracias modernas, a tolerância aparece como uma necessidade política e jurídica. Temas como a discriminação por motivos religiosos, ensino religioso na escola pública, assédio religioso, direitos sexuais e reprodutivos, capelanias militares, acordos bilaterais com algum Estado religioso (no caso a Concordata Brasil X Vaticano), exibição de símbolos religiosos em prédios públicos, uso dos meios de comunicação para incitar o ódio religioso, são alguns exemplos que apontam para a necessidade de políticas públicas que contemplem a diversidade e não estejam condicionadas por uma determinada crença.

Debater essas questões exige uma enorme disposição para o diálogo. A ONU tem encorajado os Estados membros a enfrentar esse desafio. Em 1981, na Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou Convicção, o artigo 4º propõe: “Todos os Estados adotarão medidas eficazes para prevenir e eliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções no reconhecimento, o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica, política, social e cultural”.

Os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, no plano internacional, vinculam o Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de uma transformação cultural que desnaturalize a desigualdade, impondo aos funcionários públicos postura imparcial no exercício do cargo, quando representam o Estado.

No Brasil, a Lei 9.459/97, em seu artigo 20, define como crime: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”. Caracteriza discriminação o fato de o servidor público, no exercício do cargo, estabelecer preferência ou distinção a uma determinada crença.

Nesse sentido, o artigo 19, I, da Constituição Federal estabelece a separação entre o Estado e as Instituições Religiosas, proibindo a subvenção a cultos e qualquer forma de aliança. Importa registrar que a colaboração mencionada no dispositivo, deve atender ao interesse público, o qual não se confunde com o interesse circunscrito a um conjunto de pessoas que compartilham determinada crença, ainda que majoritária.

A iniciativa do Governo Federal, de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, coordenada pela Ministra Maria do Rosário, merece ser festejada por todos que acreditam na democracia, pois demonstra a necessária disposição para o diálogo com os mais variados segmentos da sociedade, visando reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a diversidade, à luz dos Direitos Humanos.

Nós, herdeiros e empenhados que somos dos ideais democráticos pelos quais Dom Carlos Duarte Costa tanto se empenhou, somos a favor da liberdade religiosa e, penso, deveríamos apoiar o Estado laico, pois se o Brasil fosse confessional, de qual religião seria? “Cristão”, poderiam responder-me. “Naturalmente, mas de qual confissão, denominação ou doutrina?” A que a “bancada evangélica” determinar? Deus me livre! A que a CNBB? Não, obrigado!

Um Estado laico, obviamente não quer dizer um Estado ateu que persiga e combata a Religião. Isto já é outra história.

Nossa Senhora, Mãe dos homens, rogai por nós!

São Carlos do Brasil, rogai por nós!

Padre Antonio Piber.

[1] Ver Anexo 1: "A revolução sexual destrói a família" e Anexo 2: PL 122(*): O crime da homofobia, um tema nem tão controverso.

[2] Ver Anexo 4: Qual foi o pecado de Sodoma?

[3] Ver anexo 3: Brasil, Estado Laico: uma conquista - contribuições para o debate


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